[pesquisa]
Hector Zamora
questiona os sistemas de poder, classe e raça no Brasil
Héctor Zamora, Nas coxas , 2018, videoinstalação.
Vista da instalação na Luciana Brito Galeria, São Paulo.
Foto: Ding Musa
Entre os dias 1º de setembro e 13 de outubro de 2018 a Luciana Brito Galeria exibiu dois novos trabalhos de Héctor Zamora (Cidade do México, 1974): Nas coxas, videoinstalação que ocupa o anexo posterior e Acima de tudo, vídeo produzido a partir do registro de uma ação realizada na casa.
Nas coxas é um desdobramento da ação Capa-Canal, realizada em 2018 por ocasião da 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Por cerca de duas horas, homens e mulheres modelaram aproximadamente 700 telhas de barro sobre suas próprias pernas. Sentados em bancos de madeira, os 12 performers selecionados por Zamora realizaram um comentário da expressão popular “feito nas coxas”, termo costumeiramente utilizado para denotar algo feito sem cuidado. Na videoinstalação, apresentada pela primeira vez, as peças produzidas durante a ação são acompanhadas de um vídeo de grande formato, produzido a partir de imagens inéditas registradas durante o ensaio da ação realizada em Porto Alegre.
A origem etimológica da expressão “feito nas coxas” é tão imprecisa quanto o seu significado. A hipótese mais popular é a de que estaria associada à fabricação de telhas do tipo capa-e-canal, muito empregadas no Brasil nas construções do período colonial. Segundo essa versão, “fazer nas coxas” faria referência à falta de habilidade dos escravos em produzirem, utilizando suas próprias coxas como moldes, telhas com a qualidade requerida. Há, no entanto, outra possível raiz para a expressão, dessa vez baseada nos costumes do Brasil colonial: ela estaria também associada à prática de relações sexuais antes do matrimônio, ato condenado pelas regras sociais da época. Nesse sentido, a expressão faria referência um ato sexual inacabado, praticado às pressas e às escondidas.
Em Nas coxas, Zamora realiza provocações a partir do limite entre os dois significados da expressão. Por um lado, a tese ancorada na tradição da construção civil é questionada. No vídeo, os enquadramentos focados nas pernas dos performers denunciam as nossas naturais variações morfológicas, sobretudo em um país como o Brasil, onde a miscigenação é regra. Resultado material dessa heterogeneidade, o conjunto de telhas que vemos junto ao vídeo forma uma espécie de telhado impossível, onde devido à irregularidade das peças há mais frestas do que superfície de vedação. Por outro lado, a languidez dos gestos, a viscosidade dos materiais e a sonoridade dos movimentos captados embebem de sensualidade o processo de confecção das peças, reforçando o significado atrelado ao comportamento sexual socialmente indesejado e recorrente no Brasil-Colônia.
Apesar de demonstrar que a tese de que seja possível construir telhados de edifícios a partir de coxas humanas é questionável, ainda assim a obra aponta para o esforço físico que métodos de construção civil rudimentares como os do nosso país demandam até hoje. Um preço alto, pago no passado pelo trabalhador escravo e, no presente, pelo trabalhador precário, que ainda figura no cenário da construção civil. Além disso, a ambiguidade semântica trazida à tona pela obra levanta dúvidas sobre o peso atribuído às possíveis origens da expressão. Ao questionar a popularidade do significado ligado à manufatura sem qualidade realizada por escravos, emerge a dúvida sobre de quem seria, afinal, a responsabilidade sobre o que é mal feito em nosso país. ¿Seria do escravo negro submetido ao trabalho forçado ou do senhor branco que se utilizou do corpo desse mesmo escravo não apenas como ferramenta de trabalho, como também, secretamente, de deleite nas horas vagas?
Detalhe da instalação
Foto: Filipe Berndt
Em ato contínuo, no dia 1º de setembro, data do lançamento de Nas coxas, outra obra foi realizada. A ação intitulada Acima de tudo, inédita e site-specific, foi realizada na própria galeria e parte de uma reflexão sobre as contradições tectônicas e sociológicas do modernismo brasileiro. O vídeo, que registra a ação e integra a exposição desde o dia 20 de setembro, conta com a participação de dez operários da construção civil, convidados por Zamora a ocuparem o ponto mais alto da edificação: a cobertura do segundo pavimento da casa.
A Residência Castor Delgado Perez, hoje ocupada pela Luciana Brito Galeria, foi projetada na década de 50 pelo arquiteto Rino Levi, um dos ícones do modernismo brasileiro. A edificação, que se desenvolve predominantemente no pavimento térreo, é caracterizada por uma generosa luminosidade e grande permeabilidade entre ambientes, devido à quase ausência de paredes opacas e a um conjunto de pátios situados em seu interior. Realizada em 2016, a reforma de adequação ao uso como galeria preservou muito das suas características originais, ponto positivo se considerarmos o aspecto da preservação do patrimônio arquitetônico brasileiro. No entanto, essa mesma diretriz de conservação impõe desafios a artistas como Zamora, cuja poética não raro considera a manipulação física dos espaços onde suas obras se desenvolvem. Consciente disso, o artista optou pela estratégia de dialogar com esse icônico espaço desde fora. Para tanto Zamora escolheu como plataforma de debate a exceção tipológica da casa: o pequeno volume superior voltado para a rua. O espaço, situado acima da garagem, é apartado das demais dependências da casa e praticamente não possui janelas – apenas pequenas aberturas superiores voltadas para o interior do lote -, características que se contrapõem à transparência e à permeabilidade onipresentes no pavimento térreo.
Héctor Zamora, Acima de tudo, 2018, ação e registro em vídeo.
Registro da ação na Luciana Brito Galeria, São Paulo.
Foto: Ding Musa
Tal como em Nas coxas, em que joga com os sentidos da mitologia que envolve a expressão popular, mais uma vez a provocação do artista foi de múltipla ordem. Por um lado a ação, ocorrida na fachada voltada para rua, promoveu uma integração temporária com a cidade que inexiste na arquitetura original da casa. Totalmente aberta em seu interior, muito pouco ou quase nada dialoga com o espaço urbano do entorno, o que nos faz pensar em como nos relacionamos com a esfera pública do nosso país. Além disso, aquele volume cego e segregado foi originalmente projetado para acomodar os dormitórios dos empregados da casa, numa configuração espacial sintomática das relações entre classes no Brasil.
Héctor Zamora, Acima de tudo, 2018.
Registro da ação.
Foto: Ding Musa
Sentados na platibanda sobre pedaços de papelão, ao longo do dia os dez operários puderam ser avistados conversando e relaxando como quem estivesse em seu horário de almoço. Tal naturalidade, no entanto, contrasta com a nossa realidade social. Com suas peles escuras e suas roupas de trabalho, aqueles homens representaram o que a pureza do volume branco um dia ocultou. Ao trazer à vista aqueles cujos antepassados possivelmente ajudaram, com seus próprios corpos, a edificar e conservar o patrimônio moderno brasileiro, Acima de tudo joga luz sobre as profundas raízes da uma herança escravocrata que o discurso progressista do nosso modernismo tropical não conseguiu dissolver.