[pesquisa]
Francis Kéré:
edifícios para ensinar e aprender
Francis Kéré
Foto: Lars Borges
Nascido em Burkina Faso e titulado na Alemanha, Diébédo Francis Kéré produz uma arquitetura ímpar. Fruto de duas culturas contrastantes, suas criações se servem ao mesmo tempo do racionalismo de sua formação e das suas origens em uma comunidade africana. Curiosamente, a mistura reflete-se também na sua aparência pessoal: camisas de corte elegante convivem em harmonia com as discretas cicatrizes tribais do seu rosto.
Mais de 3 mil quilômetros separam Berlim, onde Kéré vive e trabalha, de Gando, vilarejo onde nasceu e também seu principal canteiro de obras. Na capital alemã, seu estúdio ocupa um edifício localizado próximo do Tempelhofer Feld, antigo aeroporto hoje transformado em parque. Entre arquitetos e colaboradores da Fundação Kéré – responsável pela captação de recursos e gestão dos projetos que ele realiza em Gando – trabalham com ele outras 16 pessoas. Já o seu povoado natal está localizado a cerca de 180 quilômetros em estradas de terra de Uagadugu, capital burkinabê. Com cerca de 2,5 mil habitantes, Gando não possui eletricidade, sofre com a escassez de água potável e há cerca de 20 anos era também o retrato da frágil estrutura educacional do país: sem nenhuma escola, sua população era praticamente toda analfabeta.
A situação mudaria a partir de 2001, quando foi inaugurada a primeira escola no povoado. Com pouco mais de 200 metros quadrados de área construída, foi concebida por Kéré quando ainda era estudante de arquitetura da Universidade Técnica de Berlim. O projeto ganhou destaque a partir de 2004, quando venceu o prestigiado prêmio Aga Khan – dedicado a projetos realizados em países com presença significativa de muçulmanos – caso de Burkina Faso. A pequena escola, que abrigava inicialmente 150 crianças, foi a semente de um conjunto de edifícios que hoje atende cerca de 700 estudantes.
Inaugurada há quase 20 anos, a Escola Primária de Gando foi um marco na carreira de Francis Kéré. Como professor em escolas de arquitetura, ele provoca seus alunos: "Pergunte a você mesmo se o que está propondo é algo que gostaria que tivesse seu nome vinculado dentro de alguns anos, e verifique se você se sente confortável em convidar toda uma vizinhança para usar e dar vida ao que você criou".
Em constante processo de construção, o complexo educacional de Gando tornou-se o cartão de visitas de Kéré, que tem sido cada vez mais requisitado. Com encomendas em diversos países africanos, Europa e Estados Unidos, seu foco está em projetar edifícios públicos: escolas, centros de saúde, instalações artísticas e sedes governamentais. Também atua como professor: leciona na Universidade Técnica de Munique e já passou por Harvard e Yale. Além disso, não raro é convidado a participar de exposições e congressos, a exemplo do UIA2021RIO, o 27º Congresso Mundial de Arquitetos que acontecerá no Rio de Janeiro no próximo ano e onde Kéré será um dos principais palestrantes.
O conjunto educacional de Gando atende hoje cerca de 700 estudantes. Entre os planos de Keré está o de estabelecer no povoado um centro de pesquisa e formação em arquitetura, "para testar idéias e educar uma nova geração de arquitetos e profissionais relacionados". Na foto, alunos em atividade na Escola Primária.
Foto: Erik-Jan Ouwerkerk
Construção comunitária
Por que tanto interesse na sua figura? Além de seu engajamento social, a história pessoal do arquiteto também conta pontos. Em resumo, em busca de ensino básico, Kéré deixa seu vilarejo natal ainda criança. O garoto não voltaria a viver em Gando – uma bolsa de estudos o levaria à Alemanha para uma formação técnica em carpintaria, que seria seguida do curso de Arquitetura. A precária estrutura escolar da sua infância deixaria marcas tão profundas que moldariam a sua missão profissional: nas suas palavras, “construir edifícios bons para ensinar e aprender”.
Prototipagens fazem parte da rotina de obras do arquiteto. A prática tem origens nas primeiras construções que realizou em Gando, quando ele mesmo liderava o processo. Segundo Kéré, sua estratégia tinha um objetivo: "como explicar arquitetura para uma comunidade que não sabe ler nem escrever?" Na foto, teste realizado em trecho da cobertura do projeto de extensão da Escola Primária, inaugurado em 2008.
Foto: Keré Architecture
Mas sua história de superação, por mais potente que seja, não bastaria para receber prêmios, convites para lecionar em escolas prestigiadas ou para criar ícones arquitetônicos como o Serpentine Pavilion, projeto realizado em 2017 e que o inseriu definitivamente no star system. Kéré também é, claro, um excelente arquiteto.
Uma grande árvore de Gando foi a principal referência para o seu projeto do Serpentine Pavilion, inaugurado em Londres em 2017. Segundo Kéré, "em Burkina Faso, a sombra das árvores são espaços públicos por excelência, mesmo em cidades maiores". Pensado como um espaço de convivência, o pavilhão foi composto por uma grande cobertura, apoiada em um pilar central e rodeada por um muro curvo feito de tábuas de madeira empilhadas. Os efeitos gráficos gerados pela disposição das ripas da cobertura e das pranchas do muro remete a padronagens têxteis africanas. No tratamento da madeira foi utilizado um tom de azul índigo, cor da celebração na cultura natal de Kéré: "Eu quis mostrar meu edifício na sua melhor cor".
Foto: Iwan Baan
Não é preciso ir longe para compreender: o singelo projeto da escola primária de Gando já demonstra a inteligência de seu trabalho. Construído com materiais simples, o edifício é composto de três salas entremeadas por corredores abertos, tudo coberto por um telhado único. As paredes, os pisos e os tetos das salas foram feitos de argila retirada do próprio terreno. Para a cobertura foram usadas telhas metálicas curvadas, que se apoiam sobre uma estrutura leve construída com vergalhões – barras metálicas que geralmente ficam “escondidas” dentro de estruturas de concreto. As abas largas do telhado protegem o edifício das chuvas e do sol intensos. Combinadas com aberturas no teto das salas, grandes venezianas metálicas garantem a ventilação natural permanente dos espaços. Para uma região onde a temperatura pode chegar a 45ºC, é um feito e tanto.
O processo de construção também é parte importante da prática de Kéré. “Eu não sou um grande fã de edifícios finalizados”, brinca. No caso da escola primária, o baixo orçamento obrigou-o a criar soluções construtivas que viabilizassem sua execução. Uma delas foi contar com o trabalho voluntário da comunidade. “O financiamento era limitado e sua realização precisava de todas as mãos no convés”, comenta. Sendo assim, projetou o edifício de modo que a construção pudesse ser executada por mão de obra sem experiência, mas que ainda assim garantisse um resultado com a qualidade formal e técnica desejada.
Envolver as comunidades na construção dos edifícios se tornaria sua marca registrada. Ele e sua equipe a utilizam tanto como estratégia para incentivar a apropriação do edifício pelos futuros usuários quanto como plataforma de capacitação profissional. Atualmente, Kéré conta com uma equipe de apoio local em Burkina Faso. Entre técnicos e construtores são cerca de 25 profissionais, muitos deles capacitados nas suas obras. A prática acabou criando uma rede profissional que extravasa seus projetos. Kéré comemora: “O que mais você pode querer do que o seu trabalho capacitar inúmeros outros?”
Localizada em Koudougou, a terceira cidade mais populosa de Burkina Faso, a Escola Secundária Lycée Schorge é uma versão maior e mais elaborada da Escola Primária de Gando. Inaugurada em 2016, seus cerca de 1.600 m² de área construída contém elementos conhecidos: paredes construídas com solo local, venezianas metálicas, treliças espaciais e um telhado curvo. Mas também há inovações: sua implantação cria um pátio central utilizado para recreação dos estudantes e eventos da comunidade; bancos anexados à face exterior das janelas oferecem áreas de descanso; feito de toras brutas de eucalipto, um fechamento vazado da fachada externa protege as paredes do sol e proporciona um delicado efeito de luz. Na foto, estudantes almoçam nesta varanda.
Foto: Andrea Maretto
Precisão técnica, qualidade espacial, inventividade e responsabilidade social – eis um resumo do trabalho de Kéré. Luiz Fernández-Galiano, curador da exposição Elementos Primários, realizada em 2018 em Madri a propósito do trabalho do arquiteto, não poupa elogios: “Francis Kéré não é apenas o arquiteto mais importante da África, mas também o que conseguiu reconciliar em sua obra a ética e a estética”.
Em tempo: Diébédo, em sua língua natal, quer dizer “aquele que veio organizar as coisas”. De fato, nos edifícios de Kéré pouca coisa parece estar fora do lugar.